A verdade veio à tona, no córrego sob a ponte. Por Luiz Eduardo Soares 5h1uy

Arremesso de um jovem escancara a realidade da violência policial: um gesto asséptico – descarte de uma vida descartável, sem a habitual coreografia da brutalidade. Após incentivar os banhos de sangue da PM, Tarcísio ite erros: uma harmonização facial na máscara fascista 3r5c62

No Outras Palavras

Policial militar de São Paulo arremessou um jovem da ponte. Mais um ato criminoso de brutalidade da corporação comandada por Tarcisio-Derrite? Não. O impacto na opinião pública demonstra que houve aí algo diferente. Tão diferente que jogou o governador do alto de sua arrogância no chão da oficina de reparos de imagem, onde calçou as sandálias da humildade e itiu erros.

A cena mal dirigida, absolutamente inconvincente, típica de ator canastrão, pretendia realizar duplo procedimento: harmonização facial na máscara fascista (eis aqui o membro mais original da fauna ideológica: um fascista fofo e moderado, capaz de reconhecer seus erros) e uma lanternagem política que disfarçasse o fato de que os tais equívocos matam e mataram muita gente. Sabe-se que a chamada “política de segurança” do governador é um dispositivo análogo à “ponte para o futuro” de Michel Temer: brevê para tripular a próxima campanha eleitoral, saciando a sede de vingança do imaginário punitivista, em diálogo com o medo, devidamente editado pelas redes bolsonaristas para servir ao aprofundamento do racismo e da dominação de classe.

Lembremo-nos de que no mesmo dia, também em São Paulo, um rapaz negro foi assassinado com onze tiros pelas costas por outro policial militar. Motivo da “pena capital”: furto de sabão líquido. Quantos outros crimes covardes têm sido sistematicamente cometidos por agentes do Estado, sob o aplauso da dupla Tarcisio-Derrite? Aplausos, justificativas, minimização, desprezo pelas vítimas e suas famílias são atitudes que fazem com que os policiais se sintam autorizados, quando não instados, a proceder com violência arbitrária. Por isso, toda a cadeia de comando deve ser responsabilizada.

Há cena mais abjeta do que a intimidação policial à família do pequeno Ryan, no momento devastador de sua despedida? A arrogância de quem declara “Podem ir à ONU ou à Liga da Justiça, não tô nem aí” ecoa no menosprezo pela morte de uma criança e pela dor de seus pais. Forma-se uma corrente que conecta gestos políticos, palavras, exaltação de valores e afetos negativos e ações na ponta. Forma-se a liga da indiferença à vida dos pobres, em especial da população negra.

Resta saber o que a cena bárbara da ponte traz consigo e a torna singular, em meio a um cenário tão vasto de atos perversos. A meu ver, a performance do PM desnudou a realidade essencial e mais profunda que, por vezes, é rasurada ou desfocada nas mais variadas manifestações da violência policial. Lançar o jovem do alto da ponte significa apenas isso: um descarte. Tratava-se de descarte. Descarte de mais uma vida descartável. A simplicidade do gesto, a ausência da tradicional coreografia da brutalidade policial, deixaram o movimento e seu sentido plenamente íveis (ao menos, no plano da comunicação inconsciente): nada além de descarte. Não estiveram presentes na cena o corpo ferido pelo choque, o sangue, armas e tiros, cassetetes, os pontapés habituais, as convenções típicas da linguagem que conhecemos nas reportagens, nos jogos eletrônicos e no entretenimento audiovisual, que abusam dessa gramática até normalizá-la.

Um homem arremessa outro homem para o vazio por sobre a mureta de uma ponte, como quem se livra de um saco de lixo. Nada fora da rotina. Um gesto asséptico, que não destoa da natureza, não altera a ordem das coisas como são e devem ser -um era policial, o outro, só alguém da periferia. No Rio, há alguns anos, certo coronel disse que sua polícia era um inseticida social. O que deveria soar como confissão de atrocidades a exigir a mais forte repulsa da sociedade e das autoridades, a começar pelo Ministério Público, acomodou-se às expectativas e dissolveu-se na paisagem.

Um jovem foi arremessado, e por ser o movimento tão ostensivamente perceptível como descarte, a verdade radicalmente política da violência policial veio à tona, no córrego sob a ponte.

Foto: Guilherme Derrite e Tarcísio de Freitas. Reprodução Facebook

 

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