O lorde inglês e o “popcorn seller”. Por Luis Felipe Miguel 3y545z

Delírio do juiz e “momento Joel Santana” de Jair ilustram duas formas bem diversas de viralatismo 6t1931

em Amanhã não existe ainda

Robert Louis Stevenson é um dos escritores mais injustiçados da história da literatura. Se você não quer acreditar em mim, acredite em Jorge Luis Borges, que tinha a mesma opinião. Ele pensava que A ilha do tesouro tinha destruído a reputação de Stevenson, estigmatizado como autor de livros para crianças, impedindo que alcançasse o lugar a que teria direito no cânone.

Como se escrever para crianças fosse algo menor, que exigisse menos talento. Mas essa é outra conversa.

Ainda que esteja longe de ser um especialista, me reservo o direito de ter opinião. (Peço desculpas à pessoa, que, anos atrás, me espinafrou nas redes sociais dizendo que eu não podia criticar um escritor porque não tinha doutorado em Teoria Literária. E vejam só, Borges, que estou usando aqui para referendar o que eu falo, também não tinha!).

Para mim, Stevenson é um dos três maiores escritores de língua inglesa do século XIX, atrás apenas de Jane Austen e ao lado de Edgar Allan Poe.

Lembrei dele por causa de sua famosa novela, O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que é uma obra-prima de construção psicológica, suspense e artesania literária. Trata-se de um caso de dupla personalidade, em que um médico respeitável e filantropo é cada vez mais dominado por seu outro eu, um monstro sinistro e amoral – e posso dar spoiler à vontade, porque todo mundo conhece a história, ainda que seja na forma de adaptações ou paródias. Os leitores originais, no entanto, não sabiam o que acontecia e eram surpreendidos com o final. O fato de que, mesmo sem a surpresa, a novela sustenta o interesse é mais uma evidência do talento de Stevenson.

No caso do nobre inglês que se tornou juiz brasileiro, que ganhou as páginas dos jornais nos últimos dias, temos novamente uma personalidade duplicada, mas a relação entre respeitabilidade e monstruosidade é de outra natureza.

Filho da nobreza britânica, com um nome comprido como só ostenta quem tem sangue real, Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo e depois tornou-se juiz.

Finíssimo, não é mesmo? Mais fina ainda era a grana que ele retirava dos cofres públicos. Segundo a imprensa, depois que se aposentou, em 2018, recebeu quase R$ 5 milhões, incluídos aí todos os penduricalhos que o Judiciário brasileiro concede tão prodigamente para os seus.

Como todo mundo já sabe, é tudo falso – menos o cargo e o salário, claro. Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield é apenas um Zé: José Eduardo Franco dos Reis, filho de Vitalina e outro José, nascido em Águas de Prata, município paulista de 7 mil habitantes na divisa com Minas Gerais. Há mais de 40 anos, ele falsificou seus documentos. Ingressou na graduação já com o nome inventado. E, por 25 anos, foi um juiz inglês em São Paulo.

O engraçado é que deu entrevista para a Folha quando foi aprovado para a magistratura e o jornal publicou, em 1995:

“Outro filho de imigrantes é Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, 37, descendente de nobres britânicos e futuro juiz em Limeira. Nascido no Brasil, Wickfield morou até os 25 anos na Inglaterra, onde estudou matemática e física. Quando voltou a São Paulo, decidiu estudar Direito na USP. Embora seu avô tenha sido juiz no Reino Unido, ele garante que o precedente familiar não o ajudou no concurso. ‘Conheço pessoas com um ado muito tradicional que não aram’.”

Já como Zé (ele tinha uma identidade com o nome verdadeiro), dizia ser vendedor e ter apenas o primeiro grau de escolaridade. Assim, um simples trabalhador tupiniquim era a identidade secreta do sofisticado gentleman das Ilhas Britânicas – ou seria o inverso?

Fico pensando no juiz se arrumando todas as manhãs, vestindo seu blazer de tweed. Parando tudo para tomar seu chá às 5 da tarde, religiosamente, todos os dias, como dizem que ele fazia. Contando aos colegas que contratara um fonoaudiólogo para perder o sotaque britânico. Será que ele se via, a cada vez, dentro de uma farsa – ou acreditava que era mesmo o lorde inglês, com o Zé original bem escondido em algum porão obscuro de sua mente?

E quando ele ia para a Inglaterra, pretensamente para participar de festividades de seus primos da família real – casamentos, coroações? No quarto do hotel, acompanhando a cerimônia pela TV (eu o visualizo sozinho, de fraque, com os olhos vidrados na telinha), ele necessariamente se daria conta de como tudo era doentio e absurdo e lamentaria ter se colocado em uma situação da qual não tinha mais como recuar. Ou, ainda nessas circunstâncias, conseguia bloquear de alguma maneira?

Agora, quando a polícia o flagrou e ele inventou a história mal alinhavada do irmão gêmeo – será que aí, enfim, a casa caiu?

Quando parecia que nada superaria o delírio do juiz como matéria-prima para o divertimento nacional, tivemos o empolgado discurso de Jair na manifestação em favor da impunidade para seus crimes. Como tantas outras pessoas, só consegui decifrar sua fala com o auxílio de legendas.

ilustração de Francisco Dalcastagnê Miguel

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