É difícil pensar num futuro para a democracia no Brasil sem um projeto popular para sua reconstrução 1a1c2p
Na segunda-feira, participei do seminário “O futuro da esquerda: imes e desafios”, na Universidade de São Paulo, em mesa ao lado do prof. Jean Tible, com mediação da cientista política Camila Rocha.
Publico aqui a minha intervenção no evento:
Se eu tivesse que resumir a minha fala a uma única palavra, tendo como tema o título desta mesa, isto é, o estado da democracia brasileira, a palavra seria: “terminal”. Não é que eu goste de ser pessimista; são as circunstâncias que me obrigam a sê-lo. Tento seguir aquele dístico que Gramsci gostava de citar, mas a verdade é que o trabalho de aceitar o pessimismo da razão anda bem mais fácil do que o de sustentar o pessimismo da vontade.
Como, feliz ou infelizmente, me concederam um pouco mais de tempo e posso ir além de uma única palavra, vou desenvolver este veredito em três etapas. Primeiro, vou apresentar um entendimento do que foi o pacto que construiu a Nova República, a Constituição de 1988 e, enfim, aquilo que aceitamos como sendo a democracia no Brasil contemporâneo. Uma democracia limitada, cujas proteções se estendiam diversamente aos diversos grupos sociais, acomodada a todas as formas de dominação, mas a democracia que parecia possível nas nossas circunstâncias. Em seguida, vou discutir as razões da ruptura deste pacto, uma ruptura unilateral, decidida pelas classes dominantes. Por fim, vou tentar entender as razões pelas quais as forças que buscam a restauração do pacto democrático, capitaneadas pelo PT, são incapazes de alcançar sucesso, mesmo tendo conquistado novamente a presidência da República.
É importante lembrar que a democracia liberal foi produzida historicamente como o resultado de lutas dos grupos dominados. O projeto liberal da burguesia em ascensão na Europa não contemplava a democracia: previa uma disputa política restrita, com o voto censitário e a distinção entre a “cidadania ativa” dos proprietários e a “cidadania iva” do restante da população. Foi a luta da classe trabalhadora, das mulheres, das minorias raciais, que expandiu o direito de voto e universalizou o o (formal) à cidadania ativa.
Mas, no nosso caso, a democracia surge não como o resultado de lutas com horizonte emancipatório, mas como um modelo pronto para ser importado.
Quando a permanência da ditadura se tornou insustentável, tanto pela crescente insatisfação na sociedade quanto pelas tensões internas aos grupos que davam e ao regime, a alternativa já estava pronta. Não havia muita dúvida, por parte dos principais atores políticos, que deveríamos produzir uma democracia de tipo ocidental. Sim, restavam questões a serem debatidas, como presidencialismo ou parlamentarismo ou, então, sistemas eleitorais, mas o figurino básico estava lá: uma carta de direitos incorporada na Constituição, sufrágio universal, separação de poderes, freios e contrapesos, império da lei.
Quando as transições democráticas eram um tema central de estudo na Ciência Política, era comum ouvir a crítica à própria expressão, uma vez que transição seria um processo em aberto e não poderíamos definir de antemão que ela nos levaria a uma democracia. Eu entendo a crítica, mas creio que, no nosso caso, o final do processo, ao menos formalmente, não estava tão em aberto assim.
O que estou querendo dizer é que a debilidade histórica dos regimes democráticos no Brasil, na América Latina e, de forma mais geral, nos países do Sul Global não tem a ver com a “imaturidade” de suas populações ou a algum tipo de atavismo cultural como a “herança ibérica”, popularizada por Roberto DaMatta e outros. A questão é que, por aqui, o modelo foi implantado não a partir da pressão dos grupos subalternos, isto é, como um desafio à dominação, que exigiu concessões e acomodações, mas como um regime de dominação já testado e aprovado. Assim, o balanço entre a aceitação da ordem, pelos dominados, e as concessões em nome da paz social, pelos dominantes, é muito mais desequilibrado. Mesmo nos países centrais, o limite fundamental à democracia é a manutenção da acumulação capitalista; na periferia, com trajetória histórica diversa, as restrições são maiores, com margens bem mais reduzidas para a presença autônoma das classes populares nas arenas políticas e para concessões na forma do Estado social.
Isso não quer dizer que as lutas sociais não tenham importância no processo, mas que o modelo a ser implantado fica parcialmente desgarrado delas.
No nosso caso, a Assembleia Nacional Constituinte não ficou imune ao momento histórico. Ela tinha que responder à expectativa social de construção de uma sociedade diversa. Se “ódio e nojo à ditadura”, como disse Ulysses Guimarães em seu célebre discurso na promulgação da Constituição, foi um arroubo retórico, ao menos é verdade que ela foi escrita em diálogo com as esperanças e forças sociais que haviam levado à redemocratização. Muitas de suas características – como o garantismo jurídico, considerado excessivo por alguns – refletem a vontade de impedir a repetição das arbitrariedades do período ditatorial.
Ao mesmo tempo, a ditadura havia sido vitoriosa. O golpe de 1964 deu a si mesmo a tarefa de “limpar” o Brasil, por meio de expurgos na elite política, no sindicalismo e no serviço público, o que começou com os próprios militares. A liquidação da esquerda, ansiada pelo golpe, estava concluída em meados dos anos 1970, quando a cúpula do Partido Comunista Brasileiro foi dizimada. As organizações atingidas nunca foram capazes de se recuperar.
A destruição da esquerda marxista foi parte central da estratégia da abertura. Tratava-se de “eliminar aqueles considerados ‘irrecuperáveis’”, como escreveu Janaína de Almeida Teles; aqueles que não podiam existir no futuro que a ditadura desenhava. Esse futuro era o de uma “democracia” abastardada, em que a competição política era muito limitada e qualquer alternativa considerada demasiado radical pelos militares estava afastada de antemão. Quando o horizonte de possibilidades estivesse suficientemente , o princípio (formal) da soberania do voto popular poderia ser restabelecido.
Destas pressões contraditórias, um ímpeto transformador estabelecido sobre um terreno devastado pela ditadura, nasceu a Nova República.
Na Constituinte, era impossível recusar a percepção dominante de que era necessário garantir um amplo espectro de direitos e liberdades e mesmo de que da democracia deveria necessariamente brotar uma sociedade menos injusta – o que, na linguagem da época, era chamado de “resgaste da dívida social”. Por outro lado, havia a manutenção de muitos recursos de poder nas mãos dos militares, capazes de impor seu veto em questões sensíveis a eles. E muitos grupos dentro da própria esquerda consideravam que a edificação dos conjuntos de instituições próprios da democracia liberal (eleições livres, direitos individuais, separação de poderes) tinha primazia absoluta. A construção de um país mais justo e a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, para nem falar do socialismo, viriam das lutas possíveis dentro do novo quadro de liberdades.
Com exceção da questão militar, a Constituição de fato delineou uma ordem liberal democrática bastante avançada. Ainda assim, o Brasil viveu de crise em crise, com escândalos diversos se sucedendo e dois impeachments presidenciais (é verdade que muito diversos entre si), em pouco mais de duas décadas. Parte da explicação pode ser atribuída à fragilidade das instituições representativas.
Não é só no Brasil. A representação política é necessariamente imperfeita, uma vez que a especialização funcional dos representantes os afasta de suas bases. Só que é uma imperfeição desigual, que afeta de forma muito mais pesada os grupos dominados, como a classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, os povos indígenas, os grupos LGBT, que têm maiores dificuldades para ver seus interesses e suas perspectivas espelhados nos espaços de poder. A partir do final do século XX, a crescente consciência desse problema levou a uma crise de confiança nas democracias representativas.
No Brasil, esta crise surgiu rapidamente e se amalgamou aos conflitos para implementar os aspectos mais progressistas da Constituição no cotidiano social. Um desafio grande, uma vez que o ambiente ideológico tinha rapidamente mudado. Com a queda do muro de Berlim e o triunfo avassalador do neoliberalismo, direitos sociais e trabalhistas e políticas de combate às desigualdades aram a ser enquadrados como “atraso”, como impedimentos à competitividade no cenário internacional, como resquícios de uma mentalidade “jurássica” (como gostava de dizer Roberto Campos). Afirmava-se a lição de Montesquieu: as leis têm que estar ancoradas em forças sociais que garantam sua vigência. Sem a pressão dos dominados, a Constituição era letra morta.
Ainda assim, chegamos ao nosso pacto social-democrata desnaturado, na formas das políticas de redução da pobreza. O fato é que, mesmo com todas as suas limitações, a democracia eleitoral pode produzir uma pedagogia popular. A população aprendeu a premiar candidatos que implantavam determinados programas compensatórios, o que levou às quatro vitórias consecutivas do PT em eleições presidenciais.
Apesar de todos os cuidados para garantir a baixa intensidade das transformações geradas com estas políticas, elas incomodaram grupos com poder. Afinal, o Brasil tem uma economia com baixo dinamismo, cuja competitividade internacional é baseada na superexploração da mão de obra. A redução da vulnerabilidade dos mais pobres amplia sua capacidade de barganha e pode comprometer a reprodução dos níveis de exploração – é o velho lamento de que “o Bolsa Família torna os pobres preguiçosos”. As classes médias, por sua vez, viam com temor a redução de sua distância social em relação ao andar de baixo, uma distância que é o fundamento de sua autoimagem e de sua autoestima.
A ampliação da agressividade contra os governos do PT, apesar de todos os esforços conciliatórios do lulismo, tem a ver com essa situação. A opção pela ruptura com as regras formais de o ao poder (com o golpe de 2016), pelo rompimento aberto do império da lei (com a prisão de Lula) e, por fim, pelo bolsonarismo, mostra que, para um setor expressivo de nossas classes dominantes, era imperativo estancar as políticas mínimas de reforma social com sentido igualitário que estavam em curso.
Quando a brutalidade e o irracionalismo do governo Bolsonaro se tornaram excessivos e contraproducentes mesmo para alguns de seus apoiadores iniciais, concedeu-se a possibilidade do retorno de Lula à presidência, na esperança de que ele fosse capaz de reproduzir sua mágica de pacificação social. Mas os constrangimentos para sua ação eram bem mais apertados.
Pilotando uma coligação heterogênea que inclui muitos antigos golpistas e mesmo bolsonaristas envergonhados depois arrependidos, convivendo com um Congresso cada vez mais ávido pelo controle do orçamento público, tendo que se apoiar na parceria com um Supremo Tribunal Federal que já se mostrara vacilante (para usar um eufemismo) na defesa da democracia e da Constituição, Lula tem reduzida margem de manobra. As políticas compensatórias que tinham marcado seus governos anteriores se viram forçadas a se adaptar, ainda mais estritamente, à ortodoxia fiscal, que tem prejudicado o investimento público em todas as áreas.
A “frente amplíssima” gera, dentro do próprio governo, um conjunto de entraves à adoção de políticas transformadoras. Ele parece limitado a um programa restaurador: restaurar a democracia limitada que tínhamos, restaurar a vigência da Constituição, restaurar programas compensatórios. Com isso, a extrema-direita mantém o monopólio do discurso da indignação e da contestação dos limites da ordem atual. Um paradoxo se instala: a frente ampla é apresentada como necessária para derrotar a extrema-direita, mas solapa a possibilidade de avançar no sentido de reduzir a base social desta mesma extrema-direita.
Ainda assim, o governo tem obtido avanços, em particular a redução da miséria e do desemprego, com um aumento sutil do poder de compra dos salários, limitado pela inflação. Ao contrário do esperado, porém, isto não se refletiu em melhoria dos índices de popularidade do novo presidente ou na desidratação da base da extrema-direita. Algo semelhante, aliás, foi detectado nos Estados Unidos, com a presidência de Joe Biden, enfim derrotado na tentativa de fazer sua sucessora. Outro paradoxo se manifesta: a decadência dos resultados materiais obtidos pelos regimes democráticos é uma causa da crise da democracia, mas a melhoria desses resultados parece impotente para estabelecer uma reação.
Temos uma direita disposta a aplicar seu programa máximo, sem quaisquer concessões, e uma esquerda na defensiva, aceitando todas as acomodações. Contrariamente a tudo que se poderia esperar, desde a crise inaugurada pela conspiração Lava Jato, o PT ampliou sua hegemonia na esquerda. Mesmo o PSOL, que era a única organização partidária concorrente com certa importância, tornou-se em grande medida um satélite do petismo. E o PT deixou há muito de ser o partido com projeto de transformação social radical que foi em sua origem. O PT ocupa a posição que seria do velho MDB (o da oposição à ditadura, não o covil de oportunistas rasteiros que é hoje). Ele não apoiou Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, votou contra o texto final da Constituição de 1988, mas acabou por ser tornar o “partido da Nova República”: aquele que zela pelos pactos que a fundaram e que joga o jogo político tal como está dado, sem esperar por qualquer mudança.
Neste processo, o PT perdeu capacidade de mobilização – e, por consequência, todo o campo popular perdeu junto. Em parte, isto se deve a natureza das concessões que o PT estabeleceu para poder exercer a presidência, reduzindo a resistência das classes dominantes, em que o compromisso de manter as transformações sociais em voltagem baixa era afiançado pela desmobilização das bases sociais que poderiam forçar mudanças mais expressivas. Mas outra parte se deve à ausência de um horizonte de transformação, que caracteriza a esquerda de forma geral, desde a falência de seus dois grandes projetos (o socialismo e a social-democracia).
O declínio do pertencimento de classe, que tem vários motivos, de mudanças nas relações de produção no capitalismo recente ao êxito da ofensiva ideológica da direita, priva a esquerda de uma identidade coletiva sobre a qual alicerçar a sua mobilização. Seu lugar é ocupado, cada vez mais, por identitarismos fragmentários, que são não apenas incapazes, mas desinteressados de alcançar qualquer universalidade e, por isso, ficam fadados à acomodação com a ordem social existente – aquilo que Nancy Fraser discutiu em seu artigo sobre o neoliberalismo progressista. Décadas atrás, Laclau e Mouffe falavam sobre o fim da “ilusão da possibilidade de uma vontade coletiva perfeitamente una e homogênea que tornaria inútil o momento da política”. Não se trata mais apenas de dar vazão aos interesses de uma classe operária entendida como sujeito coletivo unitário, mas de construir a vontade política e a unidade na ação de uma multiplicidade de grupos dominados. Essa tarefa não foi cumprida.
É um problema que não é só brasileiro, embora ganhe contornos próprios nas nossas especificidades. Temos uma crise da nossa democracia que acompanha movimentos globais. E não sabemos como reavivá-la, em parte, também, porque não conseguimos nos libertar do imaginário do liberalismo como alfa e ômega do projeto democrático. Uma parte da esquerda tem como única ambição a restauração de uma ordem perdida, mesmo com o exaurimento das condições que permitiam sua existência. Outra, bem minoritária, mas barulhenta, ignora alegremente o valor da democracia, exaltando regimes autoritários que seriam pretensamente populares, como se vê pela voga de diferentes tipos de neostalinismo. O estado desanimador da democracia é também um reflexo da falta de rumos para a redemocratização da sociedade, entendida em seu sentido radical de combate às formas de opressão vigentes.
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A greve geral de 1917 em São Paulo.