Mujica: mil faces de um homem leal. Por Deni Alfaro Rubbo 2r3v2e

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José Alberto Mujica Cordano (1935-2025) será rememorado pelo seu permanente renascimento. Sua extraordinária biografia política segue despertando curiosidade por todo o planeta. Como poucos, “Pepe”, como era conhecido, teve claramente uma causa genuína para viver e o fez com um entusiasmo peculiar mesmo em condições absurdamente desfavoráveis. Provavelmente o interesse das novas gerações por sua figura seja devido também ao expressivo número de acontecimentos e reviravoltas que sucederam em sua trajetória, entremeada de derrotas, ilusões, esperanças, lucidez, loucuras, pessimismos, contradições e afetos. As diversas imagens que atravessam como uma flecha as etapas de seu itinerário intempestivo carregam em comum o comprometimento inegociável de transformar o mundo, que se manteve fervorosamente até o fim.  

Uma poderosa e decisiva imagem — Pepe é a face daquele dedicado à ação militante, na qual se inicia ainda adolescente, aos 14 anos, no bairro de Paso de la Arena, uma zona semirrural de Montevidéu, capital do Uruguai. A construção de uma comunidade humana autêntica como um caminho possível e desejável, seguindo a sabedoria aimará, o acompanhou durante toda sua vida. É possível que essa inclinação esteja ligada ao local onde nasceu, caracterizado por uma socialização mais coletiva de práticas na agricultura naquele período. Órfão de pai desde muito cedo, Mujica trabalhou com sua mãe como florista e foi também agricultor.

Na universidade, especialmente no movimento estudantil, amplia-se o horizonte por uma transformação radical da sociedade concebido como um socialismo comunitário. É alguém que também cultivou a prática da leitura e até o fim de sua vida. O Mujica intelectual foi herdeiro de uma cultura cosmopolita, lendo diversos autores e tradições de pensamentos, como filósofos, antropólogos, historiadores e literatura. Nem adotou um cosmopolitismo abstrato, nem ficou refém de um localismo conservador. Seu repertório intelectual avançou consideravelmente, indo de Maquiavel a Confúcio e Clausewitz, ando por Marx.

Sua simpatia por um socialismo mais inclinado às práticas de autogestão não tinha afinidade com o que era a URSS então. Ele chegou a visitá-la no início da década de 1960 (também foi para a China), como representante da juventude do Partido Nacional uruguaio, mas a luxúria dos membros do partido soviético (na época de Kruschev) o decepcionou. Em meio à ojeriza aos dogmatismos que operavam na URSS, Pepe aproxima-se do anarquismo (ou de um marxismo libertário), reforçando essa aposta em um sentido comunitário. Destaque para a leitura da revolucionária Rosa Luxemburgo, por quem teve verdadeiro fascínio em razão da luta simultânea por socialismo e liberdade travada pela marxista polonesa. É o Mujica militante anticapitalista.1

A aposta militante faz com que, a partir dos ventos revolucionários da Revolução Cubana, Mujica coloque o corpo na radicalidade do movimento guerrilheiro uruguaio, o Movimiento de Liberación Nacional — Tupamaros (MLN-T). Organização que é violentamente perseguida pelos aparatos repressivos uruguaios antes e durante a ditadura instaurada em 1973, Mujica é obrigado a viver clandestina e perigosamente na década de 1960. É a face do Mujica guerrilheiro.

Emerge também o homem preso por quatro vezes durante sua vida. Na primeira delas, em 1964, ou oito meses em cárcere e sofreu torturas. Como integrante da guerrilha tupamara, foi preso novamente em 1970, após levar seis tiros, mas escapou logo depois. No ano seguinte, um roteiro semelhante, com direito a uma fuga cinematográfica: junto com mais de cem tupamaros, cavaram um túnel e escaparam, episódio que ficou conhecido como El Abuso. São capítulos de um guerrilheiro rebelde que vivia para lutar e lutava para viver.

A última prisão foi a mais longeva e dolorosa, quando em 1973 é capturado pouco antes do Golpe de Estado protagonizado pelos militares. Permanece preso durante 11 anos, seis meses e sete dias. Esse episódio ficou conhecido como os “nove reféns da ditadura”, em que foram presos outros oito líderes do movimento guerrilheiro concomitantemente a outras lideranças mulheres da organização em situação idêntica.2 Uma das características isolamento imposto pelo Estado repressivo para dificultar a localização dos reféns foi a mudança forçada de presídios, o que ocorreu inclusive com Mujica. Durante o período, ele esteve quase sempre incomunicável e em solitárias. As condições sub-humanas o fizeram enlouquecer repetidamente. Foi libertado somente em 1985, com um vaso de flores na mão. La noche de 12 años, filme do diretor Álvaro Brechner, ilustra magnificamente esse obscuro capítulo. É o Mujica prisioneiro.

Mujica foi também deputado, senador, ministro e presidente da república de seu país. Foram postos que o permitiram conhecer mais o interior do Uruguai e, ao mesmo tempo, circular internacionalmente, aproximando-se de distintas personalidades mundiais. Como presidente, aprofundou a política de relações internacionais e teve um governo pragmático, conciliador em muitos aspectos. Contudo, alguns feitos foram notáveis. Acolhendo lutas históricas de movimentos feministas, LGBTQIAPN+, entre outros, em seu governo foram legalizados o matrimônio matrimonio homoafetivo, a descriminalização do aborto e a regulamentação e comercialização da maconha — pautas que tiveram ressonância internacional. Tinha a percepção de que o homem é um animal político e que política seria uma mediação necessária para arbitrar os conflitos entre homem e sociedade. Para ele, a profissionalização da política produziu uma minoria de privilegiados com interesses econômicos, sendo, na realidade, a política um exercício que deveria ser vivido como a maioria desprivilegiada. Uma concepção de política que delineou sua postura de outsider: pouca afeição aos protocolos formais e as liturgias do poder, bem como a decisão de receber um décimo de seu salário como presidente. É o Mujica político.

Mujica será recordado pela sua soberba simplicidade. Um pouco de guisado de lentilha, algumas garrafas de vinho, trajado com calça esportiva e um par de chinelos; na preparação da erva-mate, nos cuidados com as plantas e flores de seu quintal, fazendo caminhadas e conversas longas e calmas, dirigindo seu icônico Fusca Azul — a lista parece resumir sua maneira modesta de viver cotidianamente. Essa consigna “viver feliz com pouco” é confundida pelos seus algozes como uma apologia da pobreza, mas é, na verdade, uma filosofia de vida que faz apologia à sobriedade, como ele mesmo argumentou. O cultivo da sobriedade da vida, sem extravagâncias e exibicionismos tão comuns hoje em dia, seria uma maneira de driblar a sociedade de mercado e de viver uma experiência mais qualitativa, dentro das possíveis circunstâncias. Embora fosse rigorosamente ateu, acreditava no milagre da vida, no sentido religioso do termo. Foi um mensageiro da importância em dar sentido ao milagre de ter nascido e na fé nos valores transindividuais. É o Mujica sábio.

Na realidade, Mujica tinha uma crítica feroz a todo desperdício do tempo de vida, tempo que a sociedade de consumo criou e domesticou. Para ele, o maior desafio da nova geração seria distanciar-se das ideologias subliminares que penetram cotidianamente nas emoções coletivas estabelecendo a confusão contemporânea entre ser e ter. Não seriam apenas gastos supérfluos e efêmeros das sociedades ansiosas, mas um tempo dedicado enormemente para o que não é essencial. Isso é particularmente importante no Brasil quando se discute o fim da escala 6×1. Não se trata do conselho de um guru de autoajuda, como muitos querem enxergá-lo (Pepe tinha muitas perguntas sem respostas), mas de outras possibilidades de viver e de apontar os limites e as consequências decorrentes da absolutização do indivíduo e do mercado. Mujica buscou construir um raro desenho em que sonho, luta e realidade aparecem no mesmo palco e movimento como sentido de existência e de horizontes alternativos. Desse modo, a popularidade de Mujica nas redes sociais tem o risco de despolitizar e descontextualizar sua trajetória e valores adotados, o transformando em um homem politicamente inofensivo, signatário de um carpe diem das benesses de um capitalismo “humanizado”.

Entretanto, sua preocupação estendia-se para o problema dos recursos naturais, das mudanças climáticas e da transformação da agricultura decorrentes do capitalismo mundializado. Desconfiava das visões que colocam o homem no centro do mundo, bem como do seu alinhamento diante das leis do mercado que estreitam cada vez mais uma real liberdade e a iminência da morte da ecologia. Compartilhou da mesma avaliação que muitos da esquerda intelectual: estaríamos vivendo uma crise civilizatória sem precedentes. Recordava constantemente do alarme de incêndio tocado pela ciência no Protocolo de Kyoto, em 1997, para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que contribuía para o aquecimento global, e como os políticos dos países foram negligentes.3 É o Mujica pensador global.

O viejo Mujica se autodefiniu como “um velho louco que tem a magia da palavra”. Não é difícil que fiquemos cativados por suas palavras, que irrigam pequenas histórias e iluminações profanas multiplicadas nas centenas de entrevistas que concedeu, principalmente nos últimos anos de sua vida. O discurso sóbrio, cultivado por certos valores, moldado pelo humor melancólico, timbre sereno e carisma discreto, na verdade, expressam a dolorosa experiência de um veterano sobrevivente diante do naufrágio das esperanças e ilusões que atravessaram o século XX e início do século XXI. Apesar das cicatrizes, das angústias e das derrotas, a esperança segue renascendo nas dores do militante, do intelectual, do guerrilheiro, do prisioneiro, do político, do sábio, do pensador global, do homem leal à luta, pois “ninguém aprende pelo que lhe é dito, aprende pelo que se sofre”. Afinal, como diria seu conterrâneo, o poeta e escritor Mario Benedetti no poema “Somos la catástrofe”:

“los derrotados mantenemos la victoria
como utopía más o menos practicable
pero una victoria que no pierda el turno
de la huesuda escuálida conciencia”
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  1. DANZA, Andrés e TULBOVITZ, Ernesto. Uma ovelha negra no poder: confissões e intimidades de Pepe Mujica. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2020, p. 93-95. ↩︎
  2. TEGA, Danielle. Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil e na Argentina, São Paulo, Fapesp, Intermeios, 2019, p. 69. Ver também PADRÓS, Enrique Serra. Enterrados vivos: a prisão política na ditadura uruguaia e o caso dos reféns. Espaço Plural. Ano XIII, n.27, 2º Semestre 2012, p.13-38  ↩︎
  3. MUJICA, José. Discurso na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), Rio de Janeiro, 2012. ↩︎
  4.  BENEDETTI, Mario.  Somos la catástrofe, Casa de las Américas, n.186, 1992, p. 63. ↩︎

Deni Alfaro Rubbo é professor do Programa de Pós-Graduação de Sociologia pela Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD) e de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande.

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