Dois vapores, dois rios, um só amor adiado. Por José Carlos Costa* 4v4w5q

“O São Francisco... ai, rio muito grande! O senhor sabe? 
A água do São Francisco é mais grossa,
não parece com a de outros rios.
Tem mesmo uma força, qualquer coisa. Dá medo.”
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

“Esperei esta ocasião por mais de meio século,
para lhe repetir uma vez mais o juramento 
da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre.”
Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos do Cólera

Costumam dizer que navio não tem alma… Que vapor é só caldeira, ferrugem e chaminé. Mas quem, como eu, navega há mais de um século no dorso de um rio tão antigo quanto a própria linguagem, aprende a escutar os silêncios. E a lembrar. 182z49

Sou o “Benjamim Guimarães”. Dentre dezenas de vapores, o único poupado. Dizem que nasci em 1913. Naveguei por muitas décadas entre Pirapora e Juazeiro, levando carta, saudade, melancia e poesia — e, tantas e tantas vezes, transportando irmãos nordestinos fugindo da miséria e da fome, para serem explorados no Sudeste.

Tive longas paradas, encostos forçados, sempre à espera de alguma reforma. Por último, parei por dez anos: cinco deles fora d’água, humilhado, abandonado, o casco rasgado e a alma esquecida — até que, finalmente, fui totalmente reformado e conduzido de volta ao rio.

Dizem que voltei. Fazem festa pelo meu retorno. Dizem, nas falas oficiais, que estou pronto de novo, brilhando como no tempo dos vapozeiros que me amavam e hoje preparam lenços para as lágrimas que lhes escorrerão o rosto quando ouvirem o meu apito e me virem deslizando feliz rio abaixo.

Mas quanto a isso… nada me perguntaram. Acham que não vejo. Que não penso. Mal sabem eles que, especialmente hoje, é só isso o que faço: penso.

Penso nas histórias que os homens contam. Nas que não contam. E nas que guardam no fundo do peito, como corrente de rio por baixo da pedra. Histórias como a de Riobaldo e Diadorim…

Ah, Diadorim… moço valente, jagunço destemido, amigo de guerra. Mas não só isso — nunca foi só isso. Era desejo disfarçado, ternura armada. E Riobaldo, aquele que conta, que procura as palavras certas — ou erradas — para dizer o indizível. Um amor que se fez açoite, culpa e saudade.

Lembro-me bem daquele trecho que ele diz com a alma trêmula diante do rio:

“O São Francisco… ai, rio muito grande! O senhor sabe? A água do São Francisco é mais grossa, não parece com a de outros rios. Tem mesmo uma força, qualquer coisa. Dá medo.”

Sim, Riobaldo, eu também sei. Sei da força, da espessura, do mistério. Eu o conheço com minhas quilhas, com minhas ferrugens.

E quando penso nesse amor que não se pôde dizer, penso também em Florentino Ariza e Fermina Daza, lá do outro lado do continente, navegando o Rio Madalena. Florentino esperou. Esperou meio século. ou por mil camas sem entregar o coração. Fermina, casada com um médico prático e frio, seguiu a vida sem saber que alguém a aguardava como quem guarda uma vela acesa na ventania.

E quando o marido morre, Florentino escreve a ela uma carta:

“Esperei esta ocasião por mais de meio século, para lhe repetir uma vez mais o juramento da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre.”

Mas não foi no cais que se encontraram. Foi num vapor. Isolaram-se do mundo, fingiram haver uma epidemia de cólera, para que ninguém os obrigasse a desembarcar. Para que pudessem, enfim, viver o amor deles sem prazo, sem culpa, sem retorno.

Dois amores — tão diferentes, tão iguais. Dois amores que o mundo não soube abrigar. E por isso escolheram os rios. Um no Madalena, outro no São Francisco.

As cidades? Ah, também delas me recordo bem.

Cartagena de Índias, com suas cúpulas, palácios, ruas úmidas de lembrança e rosas murchas.

Pirapora, mais seca, mais rústica, mas não menos lírica.

Pirapora do bairro Pitombeira, pertinho do rio — bairro pobre dos fluviários, nascedouro da Vila Pirapora.

Pitombeira da Rua Liberdade, onde reinava amizade, solidariedade e fraternidade.

Pitombeira, onde, assim se conta, chama-se Liberdade porque ali se recebia de coração aberto os que desembarcavam no porto e não tinham onde ficar.

Pirapora, com sua ponte ferroviária, sua banda de música, seu exagerado calor, suas moças na janela e suas noites de festa.

Cartagena é o que o mar carrega; Pirapora, o que o rio devolve.

Ambas as cidades de saudade.

E eu, vapor de Pirapora, olho com respeito aquele vapor colombiano, de nome bonito: “Felicidade Conjugal”. Nele, Florentino e Fermina se perderam para se encontrar. Olho e compreendo.

Compreendo que alguns amores precisam de movimento, de distância, de ritmo de remo e motor — e de solidão. Compreendo que talvez meu destino, agora, não seja mais levar gente de um porto a outro. Talvez seja apenas parar, embora ita que isso não me será facilmente permitido.

Mas não é parar por desistência, que disso eu não sou capaz não. É parar para servir de casa a quem ainda não teve lugar para amar. Deixar que Diadorim descanse sua espada na minha popa. Que Riobaldo deite seus pensamentos sem pressa sob as lanternas do meu convés. Que o amor deles, enfim, encontre tempo — já que o mundo não lhes deu espaço.

E se Fermina e Florentino, cansados de tanto fingir epidemias, quiserem também um canto mais calmo, que venham. Ainda cabe mais amor aqui.

Sim, creio que me reformaram para voltar à navegação. Mas se me deixarem escolher… Quero ser cais. Quero ser lar. Quero ser o vapor onde o amor, enfim, não precisa mais esperar.

*JOSÉ CARLOS COSTA, professor e pedagogo aposentado, filho do Comandante de vapores Osvaldo Costa Lima, vive em Pirapora-MG

Notas explicativas 2g6x3h

– Riobaldo e Diadorim — Personagens centrais do romance *Grande Sertão: Veredas*, de João Guimarães Rosa (1956). Diadorim, na verdade uma mulher, vive travestido de homem entre jagunços. Riobaldo, narrador do livro, guarda por ela um amor contido, velado pela impossibilidade social e moral de vivê-lo.

– Florentino Ariza e Fermina Daza — Casal protagonista do romance *O Amor nos Tempos do Cólera*, de Gabriel García Márquez (1985). Após cinquenta anos de separação, reencontram-se já idosos e decidem viver seu amor num vapor fluvial, isolados do mundo.

– Rio São Francisco — Um dos rios mais importantes do Brasil, com papel central em *Grande Sertão: Veredas*. Considerado personagem simbólico do sertão e do destino.

– Rio Madalena — Rio colombiano navegável que corta grande parte do país. Serve de cenário simbólico e literal em *O Amor nos Tempos do Cólera*.

– Cartagena de Índias — Cidade portuária colombiana colonial, onde parte do romance de García Márquez se a.

– Pirapora — Cidade mineira às margens do São Francisco, historicamente ligada à navegação fluvial, ponto de partida do vapor Benjamim Guimarães.

– Bairro Pitombeira e Rua Liberdade — Localizados próximos ao rio, tradicionalmente associados aos fluviários e à hospitalidade popular da cidade de Pirapora.

– Vapor Benjamim Guimarães — Barco a vapor construído em 1913 nos Estados Unidos, que opera no Brasil. Consta ser o único em atividade. Nesta crônica, assume o papel de narrador e símbolo da travessia do tempo e do amor.

– Vapor “Felicidade Conjugal” pertence a Florentino Ariza e desempenha um papel importante na narrativa, especialmente no trecho em que ele viaja com Fermina Daza, após a morte de seu marido, Urbino.

Ilustração: Vapor Benjamim Guimarães Foto de Ivan Rodrigues, fotógrafo da Prefeitura de Pirapora.

 

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