Com um didatismo singular para explicar temas complexos, o professor José Kobori tem se tornado uma figura proeminente nos debates econômicos. Nesta entrevista exclusiva, ele fala sobre as encruzilhadas da nossa época assombrada pela ruína do neoliberalismo, os impactos do avanço da tecnologia, o domínio de tecnocratas do setor financeiro no poder e aponta como o coletivismo chinês e a filosofia oriental podem trazer soluções. 4z1y40
Por Hugo Albuquerque, Jocobina
Com o retorno de Donald Trump trazendo uma turbulência mundial gigantesca, a Revista Jacobina foi conversar com o economista José Kobori. Dono de um canal no Youtube com quase 600 mil seguidores, Kobori tem sido presença frequente nos maiores podcasts brasileiros, nos quais trata dos temas mais espinhosos da economia – onde contribui com uma visão teórica e prática, de alguém que trabalhou anos no mercado financeiro.
Munido de um arsenal teórico que não se restringe à economia, ando pela filosofia onde encontra autores como Espinosa, António Damásio, Joseph Campbell, Paulo Nogueira Batista, e também o pensamento do Extremo Oriente como os textos antigos japoneses, Confúcio e o taoismo. Parte da biografia de Kobori é atravessada por uma conversão tardia ao progressismo e um processo de autocrítica às suas antigas posições liberais.
Nesta entrevista, Kobori fala sobre a catástrofe do retorno do trumpismo, a crise do dólar deflagrada pelo tarifaço, as contradições do governo Lula, as encruzilhadas dos atuais avanços tecnológicos, os impactos da inteligência artificial (IA), e chega à China e o que o Extremo Oriente tem a ensinar para um Ocidente em crise existencial.
Hugo Albuquerque- Como é que o senhor está vendo esse cenário atual da tarifaço do Trump e suas consequências. Tem algum método nessa loucura de Trump?
José Kobori- Como disse Paul Krugman, vamos parar de tentar encontrar método na loucura. Acho que todo mundo no início ficou tentando encontrar qual seria esse esse plano, o que teria de genialidade atrás dessa estratégia. Mas os desdobramentos do que está acontecendo mostram que era só uma loucura mesmo.
Trump assim como Bolsonaro, e seus equivalentes em outros países, são pessoas completamente sem nenhum preparo. Elas refletem esse atual estágio da tecnologia, sobre o qual podemos falar mais adiante – isto é, o que o lado ruim da tecnologia está causando no ser humano, o deixando cada vez menos culto e mais alienado, acomodado e facilmente manipulável.
Observando o histórico do Trump, vemos que ele não é tudo isso. Ele sempre usou de métodos escusos, pisando nos seus concorrentes, mas quebrou vários negócios quando realmente precisou istrar alguma coisa… de forma mais, mais ética. No primeiro mandato dele, ainda havia um entorno que conseguiu controlar a loucura dele, mas nesse segundo, não: Trump, infelizmente, tomou o cuidado de se cercar de pessoas fielmente apaixonadas pelo método dele. E é por isso que ele está fazendo isso.
Esse tarifaço, como vimos, não deu certo. Ele achou que era um jogo de quem ia piscar primeiro, mas ele já piscou várias vezes. Uma quando congelou as tarifas para o resto do mundo, mas manteve as contra a China, uma segunda piscada quando congelou as tarifas dos eletrônicos, dos celulares e, por fim, recuando das tarifas mais gerais. Na segunda piscada, ele congelou as tarifas sobre os produtos que representam a maioria das exportações que a China faz para os Estados Unidos: eletrônicos, celulares, chips, baterias etc.
Então, de início, muita gente achou que a China não foi contundente, que ela teria capitulado ali, quando demorou dois dias para responder e aí respondeu falando que só uma semana depois iria aplicar uma retaliação. Mas era preciso entender um pouquinho mais da cultura oriental.
A estratégia que a China escolheu, de início, atingiu setores estratégicos que não impactam tanto ela, mas atingiam Trump politicamente, que era justamente o setor de agronegócio, a base de apoio eleitoral dele – e o de minerais raros que os Estados Unidos precisa obter.
HA- De todo modo, vamos à questão do dólar: além de moeda dos Estados Unidos, ela é usada como moeda global desde o pós-guerra, o que serviu para alavancar a economia americana. No entanto, sempre houve dúvidas a respeito do que a atual istração americana planejava para o dólar – valorização, desvalorização etc –, muito embora saibamos que uma política tarifária dessa monta tenderia a valorizar a moeda e não desvalorizá-la. Mas então qual seria o plano que eles têm para o dólar?
JK- Eu acho que eles fizeram tudo errado. Mas antes vamos retornar aos personagens centrais. Scott Bessent, que ocupa o cargo equivalente ao de ministro da Fazenda dos Estados Unidos, veio dos grandes fundos financeiros e estava lá com George Soros, quando ele fez o ataque à libra esterlina – e quebrou o Banco Central da Inglaterra em 1992. Ele já deixou claro que defende que os Estados Unidos cobrem pela utilização do dólar, em uma lógica parecida com o que pretendem fazer com o seu aparato militar.
Como sabemos, os Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, se expandiram militarmente, com centenas de bases militares espalhadas pelo mundo. Isso tem um custo alto. Mas os Estados Unidos só conseguiram chegar nisso, justamente, pela hegemonia do dólar. Só que ninguém pediu para eles serem a polícia do mundo – e o mesmo vale para o uso do dólar como moeda global, que, igualmente, tem um custo alto e, por essa razão, eles querem cobrar. Isso é completamente equivocado e está criando uma série de desequilíbrios.
Vejamos o que houve com os títulos do tesouro americano após o tarifaço: eles se desvalorizaram, o que aumenta, de forma inversamente proporcional, a taxa de juros. Então eles tinham o objetivo de reduzir a taxa de juros de longo prazo, mas não aconteceu. Isso é um problema porque esses títulos do tesouro são utilizados para precificar ativos do mundo inteiro. Inclusive quando a gente faz valuation de empresas, utilizamos isso como taxa de risco.
Então, o objetivo deles era derrubar os juros que a dívida americana está atrelada, mas ocorreu o inverso – e isso foi um movimento do próprio mercado financeiro, que é muito complexo. Quando Trump veio com o tarifaço, o comércio mundial simplesmente parou – por dois, três dias –, o que gerou um problema de liquidez no mundo.
Os dólares começaram a secar. Aí, todos começaram a precisar de dólar. Quem precisa de dólar? Faz o quê? Vende os títulos da dívida americana para obter dólares. Eis que com isso, o título americano cai, mas a taxa de juros sobe, a começar para os títulos de dez e trinta anos: começou a ter vendas de títulos de dez anos americanos em todos os lugares, E aí começou a oscilar para cima as taxas desses títulos. Isso explica a primeira piscada.
HA- Logo no início do tarifaço, o Washington Post adiantou, na sua manchete de quase um dia antes, a decisão inicial de suspender as tarifas. Inclusive ele creditava como fonte os próprios parlamentares republicanos, que se apressaram em ar esse recado para a imprensa. O que aconteceu? Eles desconsideraram o fator político que seria um levante global contra as tarifas?
JK- Eu vou dar a minha opinião pessoal. Carece de mais análise, mas a impressão que eu sempre tive no mercado financeiro é que quanto mais dinheiro alguém ganha para o sistema, mais ignorante ele fica. A pessoa começa a achar que é um ser iluminado. Quando amos a fazer elucubrações mais filosóficas, e é o caso de boa parte da minha evolução como ser humano, deixamos de ter o dinheiro como objetivo final – e começamos a fazer reflexões e análises melhores.
Agora, se olharmos para trás parecia muito o que ia acontecer nos Estados Unidos, mas o cara não quer saber quando ele está ganhando, ou achando que vai ganhar, dinheiro. Essa pessoa acha que ele é o gênio e continua na mesma direção. Nas organizações do mercado, tem um economista-chefe, analistas para tentar orientar etc. É uma espécie de governança. No fundo, tudo isso serve para não deixar alguém começar a fazer só o que o feeling dela está achando que vai dar certo.
E essas grandes crises acontecem porque as pessoas tomam decisões que dão certo em momentos de estabilidade. O mercado financeiro tem uma estabilidade que nos permite determinar, até matematicamente, o que vai acontecer. No entanto, quando ele sai da estabilidade, isso demanda uma análise muito mais ligada ao comportamento humano.
Daniel Kahneman, que faleceu recentemente e ganhou o prêmio Nobel de Economia em 2002, é o pai da economia comportamental e fala muito bem sobre essa questão, o que implica na noção de que há duas formas de pensar: uma intuitiva, outra racional – a primeira mais rápida, a segunda mais lenta.
Isso nos permite ir além do que os economistas clássicos e neoclássicos falam sobre a racionalidade humana: enquanto eles entendem que há um homo economicus que sempre toma decisões racionais, Kahneman provou que não é bem assim que funciona.
Quando aprendemos a dirigir, por exemplo, não precisamos mais ficar pensando no freio, vira um processo, fica intuitivo e tomamos as decisões sem usar o sistema racional – começamos a utilizar só o sistema da intuição, o que leva a decisões erradas também, pois amos a acreditar que não precisamos mais de um processo de análise para tomar as decisões.
Enfim, fiz essa viagem para explicar o porquê que esses caras da equipe econômica de Trump chegaram nesse estágio. Eles já não fazem mais análises elaboradas para saber o que vai acontecer. Eles começam a tomar suas decisões com base na intuição, acreditando que necessariamente vai dar mais dinheiro.
HA- Porque uma das coisas que Trump tinha feito logo quando ele chegou ao poder foi a quebra de braço com o presidente do Banco Central americano, o Federal Reserve (Fed), em relação à taxa de juros. E, de certa maneira, quando vimos Trump incidindo para terminar a guerra na Ucrânia, coisa que ele não conseguiu, também tinha a ver com isso por conta dos preços do petróleo. Só que o tarifaço põe tudo isso a perder. O que tende a acontecer a partir de agora?
JK- Creio que os Estados Unidos estão numa grande armadilha. Eu acho que eles deveriam seguir fazendo um pouso suave, não forçar. Na verdade, Trump só está precipitando o declínio completo da economia americana. Ela vai deixar de ser hegemônica? Obviamente que sim, embora vá continuar sendo importante. Hoje, não é tão simples assim baixar os juros nos Estados Unidos. E se ele baixar a taxa de juros, pode gerar um monte de efeito colateral no sistema financeiro mundial.
Sob o ponto de vista de política monetária dos Estados Unidos, eles costumam baixar a taxa de juros quando a economia entra em recessão ou fica desacelerada, então isso serve para gerar estímulos econômicos. Mas o que Trump está fazendo, na verdade, vai ter o efeito inverso. Se ele começar a gerar muita inflação nos Estados Unidos, a taxa não vai cair, talvez até volte a subir. Eu acho que o Fed não aumentará a taxa de juros no curto prazo, mas derrubar também é improvável – se ele derrubar a taxa de juros na marra, igual o Trump está querendo, vai gerar efeitos colaterais, principalmente no mercado de títulos.
Hoje, muitos compradores de títulos da dívida americana tomam empréstimos no Japão, onde os juros são muito mais baixos, em uma operação que chamamos de carry trade. Se a diferença entre os juros americanos e japoneses diminuir muito, essa operação começa a ser desmontada também – algo cujo efeito é aumentar a taxa de juros americana lá na frente. Trump teria que ter mais humildade, sentar com todos os seus parceiros e negociar.
O grande problema dos Estados Unidos é cultural. Trata-se de um país muito jovem que quer se comparar com o povo chinês – como, por exemplo, na atual ingenuidade de achar que vai tirar a Rússia da influência da China. Agora, Trump vem e acha que vai rachar facilmente esses seus dois grandes adversários. Mas na economia me parece que ele está voltando ao ado.
HA- Trump citou no discurso de posse dele o presidente William McKinley, que tomou posse nos anos 1890 e foi protecionista, mas que, por outro lado, fez uma política inversa imigração, trazendo – e não expulsando – imigrantes. Como uma potência tão jovem quanto a americana já está repetindo, ou tentando repetir, coisas do ado, ainda que de maneira tão torta?
JK- O Trump é um reacionário tosco. Ele quer voltar para o ado sem saber que o mundo mudou. Não existe isso. Quando Trump a a expulsar os imigrantes, com seu mercado de trabalho em pleno emprego, ele está tirando a mão de obra que aceita fazer aquilo que os americanos nativos não querem.
Quando ele fala sobre reindustrializar os Estados Unidos nessas condições, temos de olhar a questão da complexidade econômica: voltar à indústria de baixa tecnologia para fazer tênis, montar telefone etc… mas não existe mão de obra nativa que queira fazer isso, só os imigrantes… Então o Trump é um reacionário que não tem qualquer noção de História.
Mas isso é possível porque os Estados Unidos são um país que já nasceu voltado, quase exclusivamente, à acumulação de riqueza e aos valores individualistas, dando ao coletivo um valor zero. Só que no Oriente é o oposto disso. Pensemos sobre a ascensão da China: os valores e a cultura lá são completamente diferentes. E pensemos nos escritos de Confúcio, mas também, na Bhagavad Gita dos indianos. Eu estudei o Kojiki (Registro dos Assuntos Antigos [古事記]), os manuscritos mais antigos do Japão. São outros valores, voltados para o coletivo.
No Ocidente, entretanto, Espinosa me chamou um pouco mais de atenção. Eu gosto muito dele. Ou, dos mais recentes, de Michel Foucault, que escreveu um livro como a Hermenêutica do sujeito. São filósofos ocidentais que têm uma certa conversa um pouquinho com a filosofia oriental, né?
Eu gosto bastante, também, do António Damásio que escreveu O erro de Descartes – que eu li e reli quando estava preso – e um outro, A estranha ordem das coisas – no qual ele, que é neurocientista, tenta provar cientificamente que a emoção que cria a razão, não há uma “razão pura”. Quando lemos o Damásio, que cita bastante Espinosa, por meio de uma visão mais filosófica, começamos a fazer algumas ligações que nos ajudam a entender a ascensão e funcionamento da China.
Estudar a filosofia do Extremo Oriente – como o confucionismo e o taoismo – serve para entender aqueles países, mas também para constatar que os Estados Unidos têm de evoluir enquanto cultura para superar o individualismo que, inclusive, influenciou muita gente aqui. Infelizmente, o povo brasileiro parece que ama mais os Estados Unidos do que o Brasil.
Eu morei dois anos no Japão e lá entendi melhor a cultura do Extremo Oriente. Quando um japonês vai fazer uma obra, ele quer saber se ele vai impactar você, o outro vizinho ou toda comunidade dele – se o que ele está fazendo é ético. Se observarmos as coisas da China, percebemos como o espírito coletivo leva ao respeito da autoridade do corpo social…
HA- E, ao mesmo tempo, uma autoridade construída coletivamente. Não é a autoridade que está com a cabeça acima e fora da ordem – como no conceito de soberania ocidental: no caso oriental, ela está dentro, como ocorre no próprio ideograma de rei 王, isto é o que une o céu, a terra e o humano.
JK- Nos países orientais, tudo é uma extensão da família. Existe a família, que é o núcleo, mas depois a empresa e as demais organizações, até chegar no país, que é uma grande família. Não há como falar de democracia e ditadura no Extremo Oriente se você não tem essa noção. E eles são democracias, mas achamos que democracia é só a nossa. Mas que democracia? É a democracia liberal, isto é, burguesa. Mas uma democracia como a da China, talvez seja muito mais evoluída do que a nossa, não?
HA- O senhor ou por esse dissabor do cárcere no contexto da Lava Jato. Atualmente, o campo progressista voltou ao poder aqui. Mas também tem muitos desafios e muitas contradições. Qual sua avaliação da maneira como a gente está encarando, na prática, este conturbado mundo atual?
JK- O Brasil sofre, ainda, do complexo de vira-lata. O Brasil precisa ter um um projeto de nação. Em abril, na homenagem aos 70 anos do professor Paulo Nogueira Batista – que tem um livro que eu iro, O Brasil não cabe no quintal de ninguém –, ele lembrou que, poucos dias antes, o secretário de Defesa do governo Trump, Peter Hegseth, disse que a América Latina era o quintal dos Estados Unidos – e também disse, literalmente, que os Estados Unidos não podem deixar a China ter influência neste quintal deles.
É engraçado, falam isso da gente, mas muitos não se sentem ofendidos. Só que me sinto, enquanto brasileiro, totalmente ofendido pelos americanos acharem que somos o quintal deles. Isso tem muito a ver com o que o Paulo Nogueira fala no livro dele: não cabemos no quintal de ninguém. Por que que eu falo isso? Porque estamos a reboque do que está acontecendo no mundo. Então, do mesmo modo que o governo atual, estamos presos neste modelo neoliberal, que determina o sistema político.
O governo do PT é, obviamente, muito superior ao anterior, mas sob o ponto de vista estratégico, não temos um plano de país, um objetivo. Ficamos a reboque, tomando medidas paliativas para tentar amenizar os problemas que o modelo econômico causa na sociedade – isto é, a concentração de riqueza e uma exploração cada vez maior da classe trabalhadora. Parece que estamos correndo atrás do nosso próprio rabo, seja porque tem eleição no próximo ano, seja porque tem extrema direita agora.
HA- Como é que a gente poderia sair dessa armadilha? Que política? E o senhor falou num projeto de nação, mas como é que a gente pode chegar até aí com ação de massas, agitação política?
JK- Tem que ter mobilização, mas sabemos que a tecnologia nos atrapalha muito e, voltando um pouquinho nessa parte, as críticas que eles fazem à China hoje, de que seria uma ditadura…bem, a China tem autonomia, ela sempre levantou muralhas – físicas e culturais – para não estar sujeita a manipulações externas.
Eu acho que o grande problema do Japão de hoje, obviamente, é a forte influência dos americanos como se vê desde o pós-guerra: ela se manifesta na cabeça do jovem japonês, que é muito mais ocidentalizado – e prefere a influência ocidental do que a preservação da cultura japonesa.
Já a China, eu acho que foi mais sábia ao levantar essas muralhas, não deixar o soft power alheio entrar lá e influenciar a cultura do país. Enquanto isso, a gente aqui no Brasil já está completamente influenciado. E as mídias sociais ocidentais estão tornando o ser humano cada vez mais burro.
Eu brinco com minha esposa, que quando éramos mais jovens, havia aqueles filmes de ficção em que as máquinas iam ficar tão inteligentes quanto um ser humano, mas o que está acontecendo é o inverso, com o ser humanos ficando mais burro: a pessoa desaprende a andar na cidade, porque ela conta sempre com um celular que tem um mapa.
Creio que a tecnologia tem influenciado e acomodado muita gente, principalmente na nossa capacidade de crítica e de inovação. Isso faz com que as pessoas sejam cada vez mais influenciadas – e a extrema direita sabe usar isso muito bem, porque está jogando em casa quando opera nas redes sociais.
Gosto muito do Joseph Campbell, que estudou mitologias do mundo quase todo e, a partir daí, concluiu que a humanidade tem mais ou menos a mesma estrutura lógica, embora responda a ela de maneiras diferentes. E a base dessa estrutura lógica que tem na mitologia, e serve para a sobrevivência do ser humano, é de que é preciso ter algo em que acreditar.
Na tecnologia, o Ocidente utilizou essa conclusão do Campbell com objetivos econômicos: o marco digital usa muito essa estrutura comum – que ele chamava de jornada do heroi ou monomito –, mas ele utiliza isso com sentido, economizar dinheiro, então. Assim, a cultura ocidental só utiliza a mitologia com sentido econômico, não como um sentido de evolução no ser humano em um sentido espiritual, diferentemente do Oriente.
HA- Quase que uma uma certa espiritualidade materialista, onde a ciência anda junto com a alma. Ao contrário da tradição ocidental, que é metafísica: Transcendência e fé contra a ciência. E no Oriente nunca houve esse antagonismo – mas lembra o Espinosa sobre o qual falávamos antes.
JK- Sim, a espiritualidade está em você, não está fora. Um dos grandes problemas da humanidade vem de quando grande parte dela se tornou monoteísta. Então você vê os grandes conflitos de hoje e, em seguida, percebe que o ser humano ou a acreditar que por ter sido feito à imagem de Deus, ele próprio começou a se achar Deus. Ele quer impor a sua religião e crença aos outros.
Creio que enquanto a humanidade achava realmente que Deus era a Natureza, não tinha problema. Ela acreditava que a natureza tinha deuses ruins também, que tinha um deus trovão, um deus das trevas, tinha de tudo – e sabendo que fazemos parte disso, tentamos encontrar e aproveitar o que tem de bom.
Essa briga que temos no nosso interior aparece na filosofia indígena das Américas também: todo mundo tem um lobo bom e um lobo mau. Diante disso, a criança indígena pergunta ao sábio da tribo sobre qual é o lobo que vai vencer. E ele responde: aquele que você alimentar. Acho que a China pode resolver o atual conflito no mundo, porque o oriental tem essa noção de que todos nós temos um conflito.
Você tocou num ponto bom a decadência dos Estados Unidos enquanto potência econômica e até como sociedade, É justamente isso que eles semeiam a competição, a desigualdade e o conflito – e todos terão, teoricamente, ganhos econômicos dessa concorrência. Mas é o inverso. E o Oriente semeia a unidade, a superação, a cooperação. Uma sociedade é individualista, a outra, segue um tipo de perspectiva confuciana.
HA- Confúcio falava em grande conjunção, muitas vezes traduzido como grande unidade, união ou harmonia (dàtóng [大同]), o que prefigura certa noção de comunismo conforme citado pelo próprio Mao Zedong…
JK – E assim vemos que a revolução comunista na China tem o marxismo-leninismo com características de confucionismo também. E o uso de ferramentas de mercado, de alguma forma, serve para regular as relações de troca na sociedade. Tem coisas no mercado que você pode aproveitar. Desde que você não deixe um programa individualista comandar isso. É isso que os chineses fazem muito bem: eles não deixam que essas características individualistas da sociedade se sobreponham. Sim, eles precisam fazer correções como em qualquer sociedade, mas o modelo chinês está muito mais avançado do que o modelo capitalista americano.
HA – Uma mensagem final?
JK – A mensagem final é a gente continuar estimulando as nossas capacidades humanas, pensando no coletivo. Não deixar que a tecnologia nos influencie demais. Eu sei que é um sacrifício, mas sempre brinco que não uso a inteligência artificial, eu ainda sou a favor da inteligência natural. O professor Miguel Nicolelis fala bastante disso, ao lembrar que a inteligência artificial não é inteligência, nem é artificial. Então, o recado que eu dou é não se acomodar, continuar estimulando o pensamento crítico e autocrítico.