De trem, vapor e saudade. Por José Carlos Costa 5v1y3t

“Nada jamais acontece duas vezes do mesmo modo. Mas há dias em que as lembranças voltam com a precisão de um apito: cortam o ar, e nos atravessam.” — Wislawa Szymborska (adaptação livre) 4j6i4e

Houve um tempo em que Pirapora era mais travessia que destino. Década de 1960: cidade encruzilhada, acostumada a despedidas. Os trilhos e o rio eram suas veias abertas. Trens e vapores chegavam, apitavam, partiam. Conduziam sonhos, malas, esperanças, desassossegos. Muitos iam, outros voltavam. Alguns ficavam. Esses últimos plantavam raízes na areia do tempo e transformavam o próprio suor em cimento de cidade.

Era uma terra que vivia ao som dos chamados. O apito do trem, despontando no Cerradinho. O apito do vapor, na curva do São Francisco. A cidade se movia conforme esses sons. Cada embarque era uma cena. Cada chegada, um alvoroço. A lógica dos trilhos era razoavelmente previsível. A do rio, jamais: vapor tem hora de partir, não de chegar. E quem esperava, aprendia a esperar.

Nos sobrados e nas varandas, corações batiam em como com os os. Esperava-se o pai, o noivo, o filho. A mãe, o irmão, a esposa. Notícias vinham às vezes em radiograma — redigido com sobriedade por seu Vigilato Chagas, radiotelegrafista da Navegação, decifrado com ansiedade por todos nós. Era pouco, mas bastava: sabíamos o dia, podíamos imaginar a hora onde o vapor ara, onde estaria. E com esse cálculo, corríamos a avisar familiares de outros tripulantes.

Por um tempo, os vapores obedeciam à cadência dos dias para as partidas para Juazeiro: o “São Francisco”, no dia 7; o “Antônio Nascimento”, no 14; o “São Salvador”, no 21; o “Benjamim Guimarães”, no 28. O “Otávio Carneiro”, o do apito mais bonito, ficava em alerta, como sentinela do cais. O “Wenceslau Braz”, resguardando-se para os turistas. E havia o “Siqueira Campos”, sempre no dia 4, partindo com altivez para o Rio Corrente, rio de águas claras, rumo a Santa Maria da Vitória. Ainda vejo a reinauguração desse vapor: meu pai e a tripulação em fardas brancas, impecáveis, adas a ferro de brasa. A garrafa de champagne estilhaçada pela esposa do Capitão Esmeraldo — cujo nome, infelizmente não lembro, mas cujo gesto permanece. Também presente, e parecia feliz, o Comandante Ramalho, diretor presidente da Franave.

A estação ferroviária era, por si só, um universo. O trem, ora madrugador, ora noturno, desenhava rotinas, o percurso era longo demais para que não se atrasasse. Táxis, carroças, meninos de pés rachados correndo atrás de malas. Um cruzeiro e um sorriso — pagamento insuficiente para carregar o pesado mundo de alguém. Daquelas janelas saíam rostos cansados e felizes. Lá no Cerradinho, o apito ecoava e surgiam moradores, figuras de um tempo encantado, nossos maluquinhos: Jacarepaguá, Angu-sem-sal, Porco Batuta, Joana Tantã, Júlia Doida… Gente da rua e do sonho, que nos acenava com a alma, figuras eternamente lembradas.

A mim, cabia-me uma honra: buscar o “Estado de Minas” no “Bar e Mercearia Colúmbia”, do Sr. Waldemar Guimarães. Era o trem quem o trazia, sempre atrasado, mas aguardado com fé. Enquanto o jornal não chegava, meus olhos se perdiam nos gibis — que meu pai, generoso, comprava sem hesitar. Comprava também a Revista do Esporte, a Revista do Rádio, a Vamos Cantar, que trazia as letras das canções que ouvíamos no rádio da sala.

Foi assim que aprendi a ler o mundo. E a me despedir dele. Pois da mesma estação partia o trem que levava minha mãe, tantas vezes, para o Sanatório Imaculada Conceição, em Belo Horizonte, ou ao Santa Tereza, no longínquo Rio de Janeiro. A tuberculose não levava só pulmões — levava presenças, instalava o preconceito, a segregação, impedia o contato. Quando era ela que partia, ficávamos com as mãos no ar, tentando deter o inevitável. Quando era meu pai que ia ao seu encontro, o adeus era com lágrimas e silêncios. Intuíamos, ainda sem conhecer Hermann Hesse, que “cada vez pode ser a última”.

Depois, tudo mudou. O progresso não pede licença. Vieram as rodovias. Os caminhões. Os ônibus. A pressa. O silêncio. Trem e vapor foram vencidos. Pirapora, enfim, ficou quieta.

Hoje, resta o eco. A memória do “Otávio Carneiro”, e o som do seu apito cortando a curva do rio. A imagem do trem surgindo no horizonte, como se ainda nos buscasse. Nos trilhos vazios viajam fantasmas bondosos, puxando vagões de lembranças. E, se escutarmos com atenção, ainda ouviremos a locomotiva, assombrando docemente nossos sonhos.

Talvez um dia a ferrovia retorne. Não será a mesma — e nem poderia. Mas não importa. O que importa é tê-la vivido. E tê-la amado, como se ama um tempo que não volta.

* José Carlos Costa, professor e pedagogo aposentado, vive em Pirapora-MG

(Epígrafe inspirada no poema “Nada duas vezes” de Wislawa Szymborska, in: Poemas, Companhia das Letras, 2011. Tradução de Regina Przybycien.)

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